terça-feira, 19 de abril de 2011

CRÔNICA

O HOMEM NU


Por Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:
___ Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
___ Explique isso ao homem - ponderou a mulher.
___ Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações.
Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.
Deixe ele bater até cansar - amanhã eu pago.
       Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar banho, mas a mulher já se trancara la dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. 
Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
       Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com nó dos dedos:
___ Maria! Abre aí, Maria. Sou eu - chamou, em voz baixa.
       Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
       Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...
Desta vez, era o homem da televisão!
       Não era. Refugiado no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
___ Maria, por favor! Sou eu!
       Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo um pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um Ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
___ Ah, isso é que não!- fez o homem nu, sobressaltado.
      E agora? Alguém lá embaixo abriria  porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime de Terror.
___ Isso é que não - repetiu, furioso.
       Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.
       Antes de mais nada: “Emergência: parar”. Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
____ Maria! Abre a porta! – gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
___ Bom dia, minha senhora – disse ele, confuso.
___ Imagine que eu...
       A velha estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
___ Valha me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
___ Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
É um tarado!
___ Olha, que horror!
___ Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho.
Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
___ Deve ser a polícia – disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

Fonte: Para gostar de ler – Volume 3 - Crônicas

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